domingo, 7 de dezembro de 2025

O lamento de Antônio

17, novembro, 2025

Naquele domingo, 1º de setembro de 1935, havia quase duzentos anos do dia em que a Igreja de Nossa Senhora das Mercês fora benzida. De frente para o vazio físico e espiritual deixado pelo templo católico em desmonte, Antônio da Conceição, jovem integrante da Irmandade que, durante todo aquele tempo, a tinha administrado, observava, consternado, o terreno e a Praça João Pessoa totalmente à mostra.

Tratava-se, até então, de um belo e espaçoso largo, conhecido como Pátio das Mercês, com casas nas duas laterais e até uma igreja protestante, a dos Presbiterianos, compondo parte de um cenário de gerações. Do lado Leste do templo passava uma rua. Tudo iria se transformar em uma nova praça.

A ata de benzimento da igreja, datada de 10 de novembro de 1743, fora assinada pelo padre capelão João d’Andrade e Souza e pelo juiz João Rodrigues, naqueles idos do século XVIII. Antônio, que ajudava nos trabalhos burocráticos das Mercês, conservou consigo o recorte de uma velha edição do A União de 1906, com a transcrição da ata, que vivia guardada nos arquivos da sacristia da igreja sacrificada pelo progresso.

O fiel das Mercês experimentava uma imensa e dolorosa melancolia. O jornal A União, em um prédio vizinho à arruinada igreja, circulara em agosto findo com nota da Prefeitura celebrando, entre outras obras, a desapropriação e demolição da igreja setecentista. “O que havia de se comemorar em tão funesta ação?”, lamentava, sem conter o choro.

Antônio ainda podia ver as festas religiosas, promovidas pela Igreja, nas quais se guardavam resquícios de ritos ancestrais africanos com os da tradição católica, sempre cercadas de muita espiritualidade e alegria. O que seria, agora, do que sobrara da cultura herdada dos antepassados africanos? E, ainda, da vida, doravante, dos protegidos da Irmandade, atendidos pelas esmolas dos fiéis frequentadores das Mercês?

Dom Adauto, o arcebispo que concordara com a tese do prefeito Guedes Pereira sobre a necessidade de derrubar o templo para a construção de uma praça, morrera há alguns dias, sem explicar, tintim por tintim, na visão de Antônio, os reja de Nossa Senhora Mãe dos Homens, em Tambiá, e à do Rosário dos Pretos, no Ponto de Cem Réis, não mais existiam, mesmo com a construção de novas igrejas com as mesmas denominações.

O devoto já saudoso das Mercês residia ali perto, na Índio Piragibe. Na última semana de agosto, ele conseguira lugar na burocracia da fábrica de cimento, na Ilha do Bispo. Mas ele pensava nos desempregados e nos idosos que viviam da ajuda da Irmandade.
“Uma maldade grande”, julgava, misturando raiva e desejo de afastar pensamentos contra a religião, enquanto caminhava de volta para casa.

{A foto é do Pátio das Mercês, publicada por Marcondes Silva Meneses (padre, hoje diretor do Centro Cultural São Francisco), em sua dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo “O Processo de Demolição e Desmonte das Irmandades Religiosas na Cidade da Parahyba (1923-1935): O CASO DAS MARCÊS”. A foto, do Acervo Almanach do Estado da Paraíba, de 1932, segundo o Padre Marcondes explicita no texto da dissertação, mostra detalhes da rua lateral e tamanho do largo}.
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