sábado, 18 de maio de 2024

Os antigos negócios de calçada

17, janeiro, 2024

“Garraafa, meia garraafa, compro litro e meio litro…” Lá vinha ele, de porta em porta, todos os dias, comprando tudo o que entulhava as casas. Com duas cestas penduradas por cordas em cada ponta de uma trave que carregava de um a outro ombro, o homem, de voz empostada, tal qual um locutor experimentado, gritava o dia inteiro pela cidade à procura de quem lhe vendesse recipientes de vidros, desde que estivessem inteiros (ele fiscalizava, principalmente, as bocas das garrafas, tateando com os dedos).

Faziam um trabalho, em menor escala, é verdade, que hoje é feito pelas grandes empresas de reciclagem. Também se comprava revistas e jornais velhos, no peso. Aqueles marchantes, muitas das vezes, quebravam um galho danado a famílias de classe média para baixa. Donas de casas, desprevenidas de dinheiro, naquele dia, podiam acabar vendendo tralhas que lhes rendessem algum. Assim, o comprador ia fazendo o seu negócio, para voltar no outro dia, com a mesma cantilena de sempre “garraafa, meia garraafa, compro litro e meio litro…”

Mas, tinham outras gentes de porta em porta: verdureiros (comercializando, muitas vezes, produções caseiras), leiteiros (da mesma forma, vendendo leite de pequenos currais próprios), vendedores de pães (em geral, a serviço de padarias), vendedores de carvão (antes do gás de cozinha), peixeiros (e seus pescados frescos), jornaleiros, vendedores de cuscuz Bondade (dos quais já falamos em capítulo especial), vendedores de cavaco chinês, pirulito e alfenim (para alegria das crianças).

Havia também os amoladores de facas e tesouras. As donas de casa de classe média daquela época, quase todas eram costureiras de suas próprias roupas e das roupas de seus filhos. Então, toda casa tinha uma tesoura. Ao entrar na rua, o amolador, todos ficavam sabendo, já que ele se anunciava por um tipo de gaita parecida com um realejo. O equipamento de trabalho era composto por uma enorme roda de bicicleta movimentada por meio de um pedal manejado pelo amolador.

Aquilo tudo fazia funcionar, por meio de uma correia, uma roda menor, com esmeril nas bordas, onde eram amoladas tesouras e facas, soltando faíscas enormes, debaixo de estridente barulho. Os meninos, admirados com aquele fogo saindo do atrito do esmeril com a tesoura, logo cercavam o amolador. Também havia os soldadores de panelas que, em geral, eram feitas de cobre, ferro ou ágata (esmaltados), enquanto o alumínio não se tornava definitivamente popular.

Diferentemente dos amoladores de tesoura, os soldadores de panelas se anunciavam fazendo barulho num tipo de ferro velho arredondado, que eles seguravam na mesma mão com que manipulavam uma haste de ferro, produzindo som forte: ben ben ben…. Nada em casa se tornava sem serventia de vez, por conta desses ambulantes independentes que tinham como ofício o conserto de utilidades domésticas estragadas. O serviço era feito ali mesmo, na calçada de casa, sob os olhares de todos, que até podiam pedir uma melhoria no resultado.

E tinha mais: se estabelecia uma troca de conversas, devagar, impressões do dia e da cidade, uma curiosa permuta de informações entre os diversos estratos sociais, hoje inexistente. Compunha-se um conjunto mais harmônico entre as pessoas da mesma cidade, de diferentes profissões e situação social, portanto. Compradores de garrafas, amoladores de tesouras e facas, soldadores de panela, donas de casa, meninos e meninas, tudo fazia parte de um mesmo cenário pessoense, num tempo tanto mais devagar como mais humano.

Por falar em amolador, acabei lembrando uma antiga música da memorável Banda de Pau e Corda, do Recife, que diz assim: “Amolador, amolador, amolando a tesoura nas ruas. Amolador, amolador, tantas facas de prata e não suas. Amolador, amolador, amolando a tesoura nas ruas. Amolador, amolador, tantas facas de prata e não suas; e faíscas de ouro, de lata, de prata, faíscas de fogo”. Não era bacana?!

(A foto que ilustra a crônica é justamente a do equipamento usado pelos amoladores de facas e tesouras, nas ruas. A encontrei numa reportagem do Diário Carioca. O aparato virava um carrinho, para facilitar a vida daqueles trabalhadores autônomos)